WAGNER RODRIGUES POETA E CRONISTA

TEXTOS ORIGINAIS E PUBLICADOS NOS LIVROS DO AUTOR

O beijo no asfalto (Crônica de Memórias de um paulistano)

“Quando andares sozinho, distraído,
nas ruas da cidade, onde, por vezes
vibram sorrisos ou se oculta um pranto: —
Não te esqueças de mim, que te amo tanto!…”

(trecho do poema “Balada da saudade” de Bárbara Vasconcelos de Carvalho)

Bárbara Vasconcelos de Carvalho, Dona Bárbara, era orgulhosamente baiana, escritora, poetiza, educadora e professora singular!

No Jácomo Stávale, Bárbara foi das mais queridas entre os professores para muitos de seus alunos. Entretanto, não podia ser unanimidade. Sua significância não permitiria tal coisa. Na verdade, foi  detestada por alguns alunos.

Testemunhei em um site de crônicas um pouco dessa antipatia e até rancor para com a excepcional educadora. O curioso é que, mesmo nos textos desses ex-alunos que teceram palavras de ressentimento, eu pude ver a marca da professora de português.

Por ocasião da morte de Dona Bárbara, eu encontrei uma nota de uma ex-aluna que se despediu com um “Já vai tarde!”. Na crítica amarga à professora eu pude perceber uma redação muito bem escrita, sem erros, sem vícios e com muita clareza. Era possível notar alguns dos ensinamentos e mesmo a influência da professora na escrita apresentada. Resolvi postar um comentário à ex-aluna dizendo exatamente isto. Não tive resposta.

Claro que entendo os motivos dessa dicotomia.

Hábil com os números e lógica, embora capaz de produzir redações razoáveis, eu me achava bom  em Matemática e sofrível em Português. Assim, tive que me adaptar para sobreviver. Hoje estou  agradecido pelo movimento que a professora me possibilitou.

Encontrei Dona Bárbara e sua fama no segundo ano do ginásio. O choque foi monumental. Bárbara, que nos ensinava a ser econômicos nos artigos, pressupunha o conhecimento da matéria prevista para anos anteriores, tivesse você estudado com ela antes ou não. Não sei se fazia isto acreditando no planejamento da matéria ou se, deliberadamente, usava um pouco de “terror” como metodologia. Não saber era tratado com muito rigor, pelo menos um rigor aparente. Na ocasião cheguei a achar a postura injusta e até desumana. Não era. Com seu estilo, Bárbara foi responsável por nos fazer construir nosso próprio aprendizado da língua portuguesa. Desafiava-nos a obter conhecimento com autonomia, lendo muito e buscando esclarecimentos na bibliografia indicada que encontrávamos na biblioteca da escola. No final, funcionava muito bem.

Ainda tenho contato com vários dos seus alunos. Sem dúvida, vejo em cada um deles um brilho impar, um senso crítico aguçado e uma autoconfiança que, concordem ou não, devem pelo menos  em parte à excepcional formadora.    

Tentarei explicar alguns dos motivos para aquele “terror” que marcou a uns mais que a outros.

Havia uma  forma peculiar que usava para fixar um conceito ou corrigir um erro grave que surgia em algum momento. Quando um equívoco importante ocorria, Bárbara iniciava um processo no mínimo intrigante. Perguntava o que estava errado e passava a convocar os alunos na ordem da lista de presença. Outras vezes, em ordem inversa. A cada resposta incorreta, repetia o nome do infeliz, adicionando: “Nota zero!”, que anotava ou fingia anotar no seu diário de classe. Quando o erro era de um aluno que ela considerava particularmente capaz de apresentar a solução, o zero se seguia de um discurso de desapontamento que ninguém queria ouvir. Encontrada a forma correta, ninguém mais esquecia a lição. Hoje tenho certeza de que ela se divertia um pouco com isso.

Este processo mantinha-nos alertas e em constante movimento em direção ao saber. Confesso era assustador para quem não a conhecesse. Sei de alguns alunos que não o suportaram e até mudaram de escola. Entretanto, para muitos, o “terror” foi se transformando em respeito e o respeito em admiração.

Naquelas sessões de tortura, que com tempo foram ficando mais raras, quando eu sabia a resposta ficava esperando ansiosamente para a sequência me alcançar e, com júbilo, poder desvendar o mistério. Claro, quando não percebia qual era o equívoco, torcia para que alguém parasse a fila antes do vexame. Se tivesse que dizer que não sabia, a vergonha seria gigantesca. Não queria decepcioná-la.

As aulas formais de Bárbara foram se tornando uma conversa entre pares. Ganhávamos confiança e nos apoderávamos do aprendizado.

Excelente professora de literatura chocava alguns pais ao incluir a leitura de Crime do Padre Amaro no início do curso ginasial. Amadurecemos com as leituras e com as discussões com Dona Bárbara. Sabíamos distinguir os estilos dos vários movimentos literários. Correlacionávamos mudanças literárias com história, política e outras artes. Discutíamos Camões, nos encantava Machado e entendíamos, por exemplo, a retomada das tendências clássicas no movimento realista numa contraposição ao romantismo. Percebíamos o movimento cíclico motivado pela negação do que era superado ou negado até que o retomassem.

Com o tempo e com nossa evolução, Barbara passou a mostrar sua confiança e orgulho no nosso amadurecimento intelectual. Tratava-nos como adultos, apesar dos nossos treze ou quatorze anos.

Houve um episódio significativo no final da terceira ou quarta série do ginásio. Haveria uma apresentação teatral no estádio coberto do colégio. Eu e alguns colegas  seguíamos juntos para o evento, quando fomos impedidos de entrar por Juvenal, professor de educação física. Barrou-nos, pois se tratava de uma peça proibida para nossa idade. Só o pessoal mais velho seria admitido. Apresentariam O Beijo no Asfalto. Ficamos indignados, afinal éramos leitores de Eça de Queiroz, Ferreira de Castro, Graciliano Ramos e Aluísio de Azevedo. Sermos impedidos de assistir a Nelson Rodrigues era um absurdo. Procuramos imediatamente Dona Bárbara que, sem constrangimento, desautorizou Juvenal garantindo que aquela turma era suficientemente madura para qualquer tipo de arte.

Passamos todos orgulhosamente pelo “general” Juvenal e pela porta do estádio.

Por todos esses motivos ou por outros ainda mais difíceis de descrever Dona Bárbara tornou-se referência, símbolo, ícone de muitos de seus alunos. Claro que estou entre esses.

Alunos do 4º ano Ginasial do CEEN Professor Jácomo Stávale com Dna Bárbara de óculos escuro (cortesia de Cleber Papa)

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