
Não se trata, apenas, de Jeová, o Deus de Abrão. Quase todos os deuses de quase todas as religiões são chauvinistas. Jeová, Alah, Zeus, Odin eram deuses para além de machões. Xiva, se você pensa que era mulher se engana. Xiva era hermafrodita, pois trazia os “adereços” de ambos os sexos.
Como estamos aqui no ocidente do mundo, vamos nos ater ao Deus dos judeus e cristãos. Analisemos o Torah (ou o velho testamento) e os evangelhos.
A primeira parte é simples. Provar ser Deus o primeiro. Creio haver pouco a discutir, pelo menos por partes dos que acreditam. Todos os crentes “sabem” que Deus criou tudo, portanto precede a qualquer humano. Então Deus, seja misógino ou o que seja, seria primordial. Os ateus, esses ateus, como não admitem a existência de Deus em sua fé, diriam que foi o homem (ou a mulher) quem criou Deus. Acho que posso afirmar que a maioria das mulheres não criaria um misógino. Mais provável, teria sido um homem. Então já teria sido criado misógino, óbvio.
A segunda parte deve ser mais elaborada. Seria Deus misógino ou não? Para tanto, analisemos o Torah (ou o velho testamento) e os evangelhos.
Comecemos pelo começo. Genesis, aqui vamos nós:
¹ No princípio criou Deus os céus e a terra.
² E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.
³ E disse Deus: Haja luz; e houve luz.
⁴ E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
⁵ E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.
Gênesis 1:1-5
Notem que Deus (Jeová) vai criando tudo em seis dias, para descansar no sétimo. Saltemos para o quinto dia, pouco antes de criar o homem:
²⁰ E disse Deus: Produzam as águas abundantemente répteis de alma vivente; e voem as aves sobre a face da expansão dos céus.
²¹ E Deus criou as grandes baleias, e todo o réptil de alma vivente que as águas abundantemente produziram conforme as suas espécies; e toda a ave de asas conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
²² E Deus os abençoou, dizendo: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei as águas nos mares; e as aves se multipliquem na terra.
²³ E foi a tarde e a manhã, o dia quinto.
Gênesis 1:20-23
No quinto dia, Deus cria os seres que vivem nos mares e dos ares e tudo muito achou bom. Interessante esse juízo de valores sobre a própria obra. É possível que Deus também tenha sido o primeiro egocêntrico, mas deixemos isso para outra crônica.
Vamos imediatamente ao sexto dia e vejam o que acontece:
²⁴ E disse Deus: Produza a terra alma vivente conforme a sua espécie; gado, e répteis e feras da terra conforme a sua espécie; e assim foi.
²⁵ E fez Deus as feras da terra conforme a sua espécie, e o gado conforme a sua espécie, e todo o réptil da terra conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom.
²⁶ E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
²⁷ E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
²⁸ E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.
²⁹ E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento.
³⁰ E a todo o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento; e assim foi.
³¹ E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã, o dia sexto.
Gênesis 1:24-31
Assim foi o sexto dia da criação, toda alma vivente da que viveria na terra teria sido criada aos pares, inclusive o homem e a mulher.
Porém a coisa não terminou aí, como veremos. Se o segundo capítulo não é tão claro quanto a tradição judaica-mesopotâmica (conhecimento histórico não descrito no Torah), pois Deus explica que fez o homem do pó da terra como deve ter sido com todos os casais de animais, viu Deus que Adão se encontrava só. Estranho estar ele só se os fez homem e mulher… Mas a palavra de Deus nos dá uma pista. Vejamos:
¹⁵ E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar.
¹⁶ E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente,
¹7Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.
¹⁸ E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele.
Gênesis 2:15-18
Genesis 2 explica que Adão, ao contrário dos outros animais da terra estava só. Mas o que Deus explica em seguida nos indica o que não está textualmente descrito. Da costela de Adão Deus produz não uma mulher, mas uma ajudadora. Além disso, não apenas uma ajudadora, mas uma ajudadora idônea. Idônea! Ora por que Deus iria fazer agora uma ajudadora e idônea? É bem provável que por que, no casal feito a princípio, a fêmea criada não teria sido idônea? Será? Primeiro erro de Deus? Já em Gênesis parece que Deus, às vezes, se arrepende. A existência de Lilith passa a ser quase inexistente no Velho testamento e inexiste nos evangelhos. Entretanto, a Isaias, ao mesmo Isaias que antecipa a vinda do Messias, lhe escapa uma menção bem desonrosa, com deveria mesmo ter passado a ser essa figura desobediente.
14 E as feras do deserto se encontrarão com hienas; e o sátiro clamará ao seu companheiro; e Lilith pousará ali, e achará lugar de repouso para si.
Gênesis 1:24-31
Outras versões tentam substituir a figura de Lilith por outras palavras, por medo dessa lembrança. Afinal, como Deus não deveria gostar de mostrar seus erros e arrependimentos, assim pretenderam esses tradutores não tão idôneos.
Mas nós não somos obrigados a enfiar a cabeça no velho testamento. Há outras referências a serem observadas. Lilith existe em vários textos mitológicos ou religiosos, como o Talmude Mesopotâmico e o Alfabeto Ben Sira. Consideremos um texto trazido dessa obra escrita por Jesus Ben Sira, por volta de 130AC:
“Logo depois, o jovem filho do rei adoeceu, disse Nabucodonosor a Ben Sira: ‘Cure o meu filho. Se não o fizer, eu vou te matar.’
Ben Sira imediatamente se sentou e escreveu um amuleto com o Santo Nome, e ele inscreveu nele os anjos encarregados da medicina por seus
nomes, formas e imagens, e por suas asas, mãos e pés.
Nabucodonosor olhou para o amuleto e perguntou a Ben Sira: “Quem são estes?”
Ben Sira respondeu: ‘Estes são os anjos que estão encarregados da medicina: Snvi, Snsvi e Smnglof.
Depois que Deus criou Adão, que estava sozinho, Ele disse: Não é bom para o homem ficar só’
Ele então criou uma mulher para Adão, da terra, como Ele próprio criou Adão, e a chamou de Lilith. No entanto, Adão e Lilith começaram a discutir:
Ela disse: ‘Não vou deitar embaixo’, e ele disse: ‘Não vou deitar embaixo de você, mas apenas em cima. Pois você só serve para ficar na posição inferior, enquanto eu estou na posição superior. ‘Lilith respondeu: ‘Somos iguais um ao outro, visto que ambos fomos criados da terra.’
Mas eles não quiseram ouvir um ao outro.
Quando Lilith viu isso, ela pronunciou o Nome Inefável e voou pelos ares.
Adão orou diante de seu Criador: ‘Soberano do universo!’ ele disse, ‘a mulher que você me deu fugiu.’
Imediatamente, o Santo, bendito seja Ele, enviou esses três anjos, Snvi, Snsvi e Smnglof, para trazê-la de volta.
Disse o Santo a Adão: ‘Se ela concordar em voltar, ótimo. Do contrário, ela deve permitir que cem de seus filhos morram todos os dias.’
Os anjos deixaram Deus e perseguiram Lilith, a quem alcançaram no meio do mar, nas poderosas águas em que os egípcios estavam destinados a se afogar.
Disseram-lhe a palavra de Deus, mas ela não quis voltar. Os anjos disseram: ‘Nós afogaremos você no mar.’
‘Deixai-me!’ ela disse. ‘Eu fui criada apenas para causar doenças aos bebês. Se o bebê for do sexo masculino, eu tenho domínio sobre ele
por oito dias após seu nascimento, e se feminino, por vinte dias.’
Quando os anjos ouviram as palavras de Lilith, eles insistiram para que ela voltasse. Mas ela jurou-lhes pelo nome do Deus vivo e eterno: ‘Sempre que eu ver você ou seus nomes ou suas formas em um amuleto, não terei poder sobre aquela criança.’
Lilith também concordou que cem de seus filhos morressem todos os dias.
Assim, todos os dias cem demônios morrem e, pelo mesmo motivo,
escrevemos os nomes dos anjos nos amuletos das crianças.
Quando Lilith vê seus nomes, ela se lembra do seu juramento, e a criança se recupera. Fim do relato de Lilith conforme consta no Alfabeto de Ben Sira.
Referência:
1. Stern, David and Mirsky, Mark Jay. Rabbinic Fantasies: Imaginative Narratives from Classical Hebrew Literature (Yale Judaica Series). Philadelphia, Jewish Publication Society, 1990. Pp. 183-184.
Jesus Ben-Sira foi um dos grandes escribas eclesiásticos. Foi um dos mais importantes escritores da literatura bíblica judaica. Hoje em dia, quase toda a referência a Lilith desapareceu das práticas oficiais judaicas e cristãs. Só porque queria fazer sexo pelo lado de cima, Lilith foi expulsa, descasada, amaldiçoada pelo Senhor. Os eruditos religiosos gastam toda sua dialética para essa limpeza étnica em favor do queridinho da Criação. Essa preferência de Deus por Adão, a ponto de recriar uma tal de “ajudadora” e ainda “idônea” é muito, muito chauvinista.
Nem Jesus, que preferiu Maria Madalena frente aos outros apóstolos, conseguiu atenuar os problemas de seu Pai.
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