
Em algumas das férias escolares éramos convidados para passar uns dias numa casa de veraneio, em Peruíbe. Saídas como esta eram coisas raras em nossa infância. Logicamente ficávamos ansiosos e, nessas ocasiões, o tempo parecia não passar mais. Mas finalmente chegava o dia da viagem.
Na época, não havia rodovia até Peruíbe. Quem quisesse chegar lá de carro tinha que se aventurar em rodar pela areia, pelo menos a partir de Itanhaém. Areia esta sobre a qual, conta a história, José de Anchieta teria composto seu Poema à Virgem, usando um graveto, durante sua permanência de própria vontade como refém dos índios, durante a histórica Confederação dos Tamoios. Este percurso somente era seguro com a maré baixa. Havia sempre o perigo de atolamento nos vários riachos que desembocavam mansamente na longa praia. Mas para nossa família a decisão era simples: Como não tínhamos carro, nossa única opção era o trem.
Levantávamos muito cedo. As malas já estavam arrumadas de véspera. Café reforçado, descíamos a Pedro Cubas em direção à avenida Manoel de Carvalho, onde passavam os ônibus que vinham da Vila Pereira Barreto e Vila Bonilha. Seguíamos às estações de trem na Lapa de Baixo.
Atravessávamos as porteiras de duas ferrovias que seguiam paralelas na região, para ter acesso à estação da Lapa da ferrovia Sorocabana. Lá, por volta das 7 horas, apanhávamos o trem longo de vagões de madeira com suas janelas amplas e baixas.
Eu e minha irmã corríamos para algum lugar vago em alguma janela. Os bancos eram colocados como numa sala, um de frente ao outro, de forma que metade dos passageiros viajava de costas, com a paisagem fluindo como a de um vídeo em retrocesso.
O som e balanço do trem eram ritmados e seguíamos naquele rebolar arredondado, fazendo muitas paradas, algumas bem demoradas. Como a ferrovia era singela, de um único trilho, algumas paradas ocorriam com o trem em um desvio, esperando a passagem de outro que vinha no sentido contrário. Alguns desses eram longos trens de carga que passavam bem lentamente, como se as locomotivas mal tivessem força de deslocá-los.
O tempo de viagem era longo e muito variado. Nunca levava menos de cinco horas, mas podia chegar a seis ou até sete horas. Assim, minha mãe sempre preparava um caldeirão com bifes de alcatra à milanesa, mergulhados num delicioso molho de tomate e cebola, cheirando a orégano. Comíamos essa delícia em sanduiches de pães frescos, comprados pela manhã. Não era o pãozinho francês de hoje em dia, mas generosos pedaços do filão de pão.
O trem até possuía um vagão refeitório, mas no máximo tínhamos direito de sentar lá para tomar uma caçulinha, uma cerejinha, ou ainda melhor, uma Tubaína de 750 ml.
A viagem era muito bonita. Passado o percurso pela margem direita do rio Pinheiros, o trem o atravessava na altura da ponte do Socorro. Dali a pouco iniciava a travessia da região da Guarapiranga, para enfim, alcançar o longo, mas suave percurso de serra. Centenas de manacás com suas flores variadas entre o rosa e o lilás desfilavam pela janela. No inverno, havia ipês completamente amarelos. Passávamos por inúmeras cachoeiras. No meio do nada surgia uma pequena casinha solitária. Tia Rosa, dona da casa de Peruíbe, sempre dizia. “Imaginem quanta história, quanta emoção existem ali naquela casinha!”
O trem continuava e, para gastar o tempo, passávamos de vagão a vagão até o final do trem e voltávamos. Às vezes, sentávamos nas escadas entre os vagões. Lá podíamos sentir o vento no rosto enquanto nos deslocávamos pela paisagem da mata Atlântica vendo os trilhos correndo sob o trem.
Terminada a descida começavam as estações da praia grande, mas faltava ainda um bom trecho até o final da viagem. Nós sabíamos de cor a sequência de todas as paradas. Muitos dos nomes já eram sugestivos das delícias que viriam no litoral. Balneário Tal e Coisa, Solemar e assim seguiam as paradas.
Quando chegávamos a Itanhaém, sabíamos que faltavam poucas estações até nosso destino. Peruíbe era a última das estações da Praia Grande. Dalí o trem entrava na parte das fazendas de banana e dos palmitais do litoral sul.
Parado o trem em Peruíbe, era um alvoroço para que não esquecêssemos nenhuma bagagem. Meu pai contava as malas e sacolas amontoadas na estação. Pouca gente descia em Peruíbe. Infalivelmente estava lá o Seu Pedro com sua charrete puxada por um cavalo branco já velho como ele. Seu Pedro era um caiçara magro e tostado do sol. Com custo nos ajudava a ajeitar as mala. Alguns de nós seguiam na charrete e os demais caminhavam ao lado dela. O percurso da estação até o Rancho Rosa-Mar levava uns vinte minutos, tanto a pé quanto no passo lento do velho cavalo.
A casa tinha um piso contínuo de cimento queimado com vermelhão. Ficava por meses sem morador ou cuidado. Assim, antes de colocarmos as coisas para dentro, minhas mãe e tia passavam um pano úmido pelo chão e rapidamente davam uma limpada na casa. Sem poluição havia pouca sujeira e num instante a casa estava cheirosa e receptiva.
Havia um pequeno terraço na entrada. Nela o irmão do meu tio pintou uma das parede, fazendo-a parecer uma janela que abria para um jardim com uma linda roseira florida. Júlio Tondim, cunhado da tia Rosa e irmão do tio Armando era o autor da obra. Seguia uma copa e cozinha que terminava em uma porta que dava para o quintal de areia, atrás da casa. Além disto, havia dois quartos, cada um com uma cama de casal e duas de solteiro, algumas com colchões de palha. Na frente um quintal grande, com um enorme pé de caju, frequentemente carregado. No terreno vizinho subiam dois enormes abacateiros sob os quais ficava um pequeno casebre de pau-a-pique, coberto de sapé. Era a choça do Mingo, descendente dos índios da região, que vivia lá sozinho.
A rua era de areia, com um pouco de grama nativa marcada pelas rodas de carros que passavam eventualmente. As casas existiam de um lado só. Do outro lado da rua havia um córrego com guarus e girinos. À noite se ouvia o coaxar das rãs que podiam ser vistas com o lampião de carbureto, assim como lagostins e cobras d’água. Depois do almoço, eu gostava de atravessar o córrego e passear num bosque de enormes pés de jambolão, com suas frutas roxas e digestivas. O bosque abrigava de um dos lados uma antiga igreja adventista.
Peruíbe era minúscula na época. Luz elétrica acabara de chegar. Na primeira vez que fomos para lá, enquanto o Rancho Rosa-Mar era projeto, nos hospedamos na casa vizinha, o Rancho Alegre. Era uma casa de madeira bem antiga, uma das primeiras da região. Lá tínhamos de usar lampiões durante a noite e esquentar água no fogão para os banhos.
Praia ficava para o dia seguinte. Íamos bem cedo, a tempo de acompanhar a retirada da rede de arrasto, coisa dos caiçaras da região, inclusive o Mingo. Era divertido ajudar a puxar a rede com as duas longas cordas que a traziam de longe e acompanhar a retirada dos peixes. Lembro-me de levar uma dolorida ferroada de mandi que deixou minha mão inchada por vários dias.
Além da praia, havia o passeio ao Rio Preto. Lá podíamos pegar siri com armadilhas lançadas do alto da ponte. Pescar robalinhos e ximburés também era programa nas margens do rio.
Na praia, na entrada da noite, vez ou outra, íamos passar o picaré à cata de siris e camarões. No inverno encostavam grandes camarões pistola que pulavam da água, tentado fugir da rede. Para aguentar o frio, mesmo as crianças tinham direito a um gole de conhaque que era levado para esse tipo de pescaria. Quando tínhamos sucesso, voltávamos com o balde de alumínio pelo menos até a metade com os crustáceos que brilhavam à luz da lua. Em casa tudo era fervido num grande caldeirão, só até ficarem vermelhos. Com um pouco de limão vinagre de um pé do quintal e uma pitada de sal, a iguaria era devorada na mesma noite.
O programa mais ou menos semelhante era repetido todos os dias. No início eram inevitáveis algumas queimaduras de sol, muita vermelhidão que com os dias virava uma cor morena que acabava por proteger nossa pele até o final das férias. Ninguém sabia de protetor solar! Se a queimadura ardia muito, usávamos creme dental ou vinagre para dar algum alívio.
Terminadas as férias, voltávamos bronzeados, descascados, renovados e cheios de história para contar.
Na volta o trem saía de Peruíbe depois do almoço. A viagem não era acompanhada da excitação da ida. Parecia ser monótona e a paisagem não parecia ser a mesma da ida. No final dela, o trem recolhia os pescadores da Guarapiranga e chegava, já à noitinha, na mesma estação da Lapa de Baixo.
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