WAGNER RODRIGUES POETA E CRONISTA

TEXTOS ORIGINAIS E PUBLICADOS NOS LIVROS DO AUTOR

Ressaca no costão da prainha (Crônica de Memórias de um paulistano)

Sempre adorei pescar.

Antigamente, Peruíbe era ainda pouco habitada e oferecia bons pontos de pesca.

Ainda perto da cidade, de cima da ponte do Rio Preto descíamos as armadilhas de siri. Subiam quase sempre com 2 ou 3 patolas de garras arroxeadas. Nas pedras que cercavam suas margens pegávamos ximburés, acaratingas e alguns robalinhos. Escutava histórias de robalos gigantes que teriam sido pegos naquele mesmo trecho de rio. Vez ou outra surgiam enguias presas no anzol, enroladas na linha.

Cruzada a ponte do rio Preto, uma pequena estrada de areia seguia rumo às montanhas que encerram a praia grande e as praias da cidade. Não muito longe havia uma pequena enseada junto a um costão que lhe dava o nome, Praia do Costão. De lá, uma estradinha de terra rompia o morro. Cerca de meio quilómetro depois levava a uma praia formada numa pequena baia. Dos dois lados pontões de rocha adentravam o mar. No lado sul da pequena baia, no alto das pedras, encravada na montanha, ficava uma construção tão imponente quanto sinistra, a “Mansão da Solidão”. Nunca vi lá sinal de vida, mas havia um barquinho flutuando dentro de uma espécie de gruta que parecia servir de doca, porão ou calabouço à misteriosa construção.

A seguir, a estradinha atravessava o morro todo e chagava a uma vasta várzea. Era o estuário do rio Guaraú. Na descida para a baixada havia várias picadas mata adentro que levavam a costões bem piscosos e praias desertas.

O Rio Guaraú podia ser atravessado numa canoa pública ou mesmo a pé pelo estuário, com água até os joelho na maré baixa.

Do outro lado do rio havia uma praia quase intocada, toda cercada de montanhas e cobertas por mata atlântica, onde, pela manhã, ouviam-se os ecos do canto do pixoxó metralha, amplificados pela geografia do local.

Atravessada a praia, seguia-se pela montanha, através de picadas que levavam a pontos de pesca abundante, como a Pedra Santa e a Ponta da Baleia, além do rancho do Severino. Neste, de acesso bem difícil, nunca pesquei. Em todos esses pontos pescavam-se garoupas, sargos, muitas corcorocas e outros peixes de recifes. Havia outros caminhos a seguir, nos quais não nos aventurávamos com receio de ficarmos perdidos no labirinto de trilhas da mata.

Companheiro frequente dessas pescarias era meu cunhado, dois anos mais novo. Voltávamos sempre à tardezinha, pouco antes do sol se por, com muitos, alguns ou nenhum peixe. A isca era sempre camarão fresco seco no sal e algumas sardinhas para peixe maior.

As aventuras nessas trilhas e rochas são inúmeras, com tombos, bons peixes e muito medo de cobras.

Por coincidência ou não, os dois maiores sustos dessas aventuras aconteceram no lado externo da alta rocha que seguia mar adentro, em continuação à sinistra Mansão da Solidão.

Na primeira ocasião eu devia ter uns treze a quatorze anos e estava acompanhado de um primo de terceiro grau. Pescava descalço sob o sol do meio dia quando o anzol enroscou nuns mariscos na beirada do rochedo. O local parecia seguro e seco, longe da arrebentação, embora fosse próximo à descida abrupta do rochedo.

Lembro-me de que havia algo como uma renda verde escura, aparentemente seca pelo sol forte. Mal apoiei naquilo e meus pés deslizaram como se tivessem pisado em graxa pura. Virei o corpo no ar e dei de queixo na rocha. Deslizei pela encosta. Minhas unhas gastaram até a metade na tentativa de frear a descida.

Lembro-me de ver o mar, com suas ondas quebrando no recife aproximando-se rapidamente durante a descida. Tive tempo, nos décimos de segundos que tudo durou, de planejar não só como eu mergulharia, mas como faria para me afastar do recife, evitando que as ondas me arremessassem contra as pedras. Também planejei que teria que ter fôlego até contornar a ponta da pequena península, depois poderia usar as ondas para seguir surfando até a praia do outro lado, o lado da prainha.

Naquele dia a sorte seguiu o descuido. Como se fosse obra de um anjo da guarda surgiu um corte no rochedo pouco antes da água. Como um pequeno degrau, interrompeu minha descida. Nunca consegui encontrá-lo novamente. Claro que nunca mais tentei chegar tão perto da borda do recife. Também nunca mais fiz pescarias nas rochas sem alpargatas de corda.

Saí dali içado pela corda de uns nisseis que também estavam pescando e presenciaram o incidente. Outra obra da providência?

O segundo susto ocorreu anos mais tarde. Voltei a pescar naquele rochedo na companhia do meu futuro cunhado. Era julho e o mar estava de ressaca. Da prainha víamos espirros da onda mesmo do outro lado do morro. Já que tínhamos ido até lá, apesar do mar assustador, resolvemos tentar lançar umas linhas na água. Subimos na rocha das mais altas e fizemos os arremessos com chumbada pesada. Atrás da rocha onde estávamos, subia outra ainda mais alta formando algo como as costas e o tampo de um banco curvo. Estava lá, ocupado em ajeitar a mochila e o isopor com as iscas, quando ouvi meu parceiro de pesca gritando e correndo para o outro lado do penhasco: – Esta vem!

“Esta” era uma onda gigantesca que, quando vi, só tive tempo de me enroscar entre as  pedras forçando minhas costas na parede e meus pés no chão, formando uma cunha entre as rochas para tentar evitar ser levado de lá de cima. Desta vez não haveria qualquer plano para escapar daquele mar revolto. A onda bateu no meu corpo como se fosse uma bofetada de Posseidon, encharcando-me e deixando meus braços, pernas e rosto vermelhos da pancada. Todo nosso equipamento, menos a varas de molinete que tinha nas mãos, foi levado pela onda, um mini-tsunami. Felizmente eu permaneci firme, encaixado entre as rochas. Saí de lá como um louco, antes que outra onda gigantesca acontecesse.

Hoje me lembro desses sustos, na verdade riscos de vida que ocorreram nessas aventuras e que se tornaram histórias. Histórias que, por pura sorte, hoje posso contar.

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