WAGNER RODRIGUES POETA E CRONISTA

TEXTOS ORIGINAIS E PUBLICADOS NOS LIVROS DO AUTOR

Teo-Psiquê (Crônica de Deuses no divã)

Por quase três mil anos eu me sentia um deus absolutamente são. Sabia o que criara e por que havia realizado minha obra.

Foi tudo muito rapidinho, embora um pouco cansativo. Você sabe, criar todo o Universo em menos de uma semana não é nada fácil. Nem mesmo para mim.

Cansei. Ainda bem que terminei na sexta-feira à tarde. Ou foi o contrário? Isso não importa. Trabalhei desde o por do sol do sábado anterior, até terminar toda a obra. Antes disso, apenas me lembro que pairava sobre a face das águas. Seja lá o que isso queira dizer. De qualquer forma, gostei da poética da minha descrição de antes de tudo. Vejam como é bonito:

E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. Gênesis 1:2

Pois é. Nos primeiros três mil anos da minha criação eu sabia muito bem o que queria. Obediência e justiça era o meu lema. Sabia perdoar, de vez em quando, àqueles que reconhecessem seus desvios. Por outro lado, não deixava ninguém impune, para não se esquecerem das consequências. Conduta clara da minha parte. Facilidade de compreensão para meus… como é mesmo a palavra que devo usar para vocês? Ah! Criaturas humanas, vocês são minhas criaturas humanas. Criaturas nas quais centrei todo o objetivo da minha criação. Deviam se orgulhar disso.

Vocês nem eram a melhor coisa que eu fiz! Fiz todo tipo de anjo. Arcanjo, Querubim, Serafim, Potestades. Todos poderosos, segundo sua função de prestar serviços aos humanos. Fiz, inclusive, os tais de anjos caídos que prestam o serviço da tentação. Uma espécie de teste: Humano presta? Humano não presta? Descarta-se os defeituosos. Tudo muito simples.

Eu era para ser obedecido e temido! Bobeou, dançou! Se ficasse descontente com vocês eu afogava todo mundo ou queimava todo mundo. Até fiz alguns virarem estátua de sal! Não me perguntem por que, já que ninguém pode entender os meus desígnios! Eu sou o que escrevesse certo por linhas tortas, cujos fins justificam todos os meios, etc. e tal.

Podia ser politicamente incorreto, sem qualquer crítica. Escolhia meu povinho que eu quisesse e ninguém tinha nada a ver com isto. Despejava milagres para ajudar meus agregados, meus favorecidos e empesteava seus adversários.

Eu sabia claramente o que queria.

Entretanto não é mais assim. De uns dois mil anos para cá comecei a sentir um tipo de esquizofrenia. Começaram a parecer outras personalidades na minha onipresença. Passei a sofre de TDI. Sim, este transtorno, meio parecido com esquizofrenia, quando surgem múltiplas personalidades. Padre, filho, espirito santo, amém! Eu que me livre desse pesadelo!

Infelizmente, mesmo sendo quem sou, não consegui me livrar desse martírio. Ora era o Pai, deus de justiça e temor que sempre fui. Ora era o filho, deus de amor e sofrimento, um tipo meio masoquista de deus. Ora era um poliglota que pensava que era uma pomba. Coisa terrível!

Por essa enfermidade psíquica, nesses últimos dois mil anos fiquei confuso.

Acho que também confundi toda a humanidade. Como se fossem os pés de barro do sonho de Nabucodonosor, as interpretações do que eu quero e de quem é meu povo virou uma anarquia. Tem católico, tem espírita, tem luterano, assembleia de deus, testemunhas de Jeová, adventistas. Tem até “não denominacionais” para aqueles que preferem clicar em “nenhuma das anteriores”. Todos e cada um deles se achando!

Nesta confusão toda, quem não está se achando mais, sou eu!

Estou quase me declarando um ateu!

Deixe um comentário

Posted on

Deixe um comentário