
Fiz tudo com tanto capricho, com tanto amor, mas fui traído.
Minha criação não se contentou com o paraíso que lhes dei, nem com a vida de gozo eterno que lhes ofereci. Queriam mais, esses ingratos. Queriam saber os meus motivos, queriam entender o porquê!
Meu pior momento foi ceder à solidão do Homem. Achei que não era bom que ele estivesse só. Assim, pretendi dar ao homem “uma ajudadora idônea”. Não tive tanto sucesso na empreitada. Ela não se contentou com minha postura um tanto patriarcal. Hoje entendo isto, mas naquela época, na minha solidão de Deus homem, não compreendi.
Acabei por confundir minha primeira criatura quando disse:
“Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne. Gênesis 2:24”
Ora, Adão não tinha mãe e o mais próximo que conhecia como pai era eu mesmo. Nenhuma relação com aquela história fictícia do Dr. Frankenstein.
Também subestimei a mulher, deixando-a como ajudante do homem. Já naquele primórdio o sentimento feminista revolucionário apareceu. Ela queria o saber. Queria entender os meus motivos, enfim, saber toda a verdade.
Belíssima e desejável como a fiz, não foi possível ao homem resistir a seus desejos.
Não sei se fiquei mais irado com a desobediência ou com minha ingenuidade. Pura falta de previsão das consequências. Logo eu, todo poderoso e onisciente.
Algumas coisas, entretanto, não posso fazer. Uma delas é faltar com minha palavra. Nada restou senão expulsá-los. Claro que não podia ser diferente. Eu não queria concorrência. Se o homem continuasse a comer da árvore da vida, viveria eternamente sabendo do bem e do mal, como nós, quero dizer, eu e os filhos de Deus, meus queridos querubins.
Fora do paraíso a coisa desandou, como era de se esperar. Adão já compreendia o bem e o mal, assim gerou com Eva dois filhos. Caim, o primogênito, e Abel. Sempre simpatizei com o filho mais novo, criador de ovelhas. Esse negócio de preferência é outra coisa da qual não consigo me livrar. Por esse motivo, creio, Caim acabou por assassinar seu irmão. Adão, desgostoso, passou quase cento e trinta anos sem ter relações com a esposa. Mas, afinal, foi se esquecendo e depois de gerar Sete, não gêmeos, mas um filho que chamou de Sete, ele teve uma enorme prole com Eva.
Não houve jeito, eram todos irmãos e começaram a casar entre si. Nisto eu não tinha pensado. Além disso, aquelas mulheres, ainda influenciadas pelo fruto do bem e do mal, eram um arraso. Nem meus querubins resistiram. Foi uma fábrica de produzir demônios, meus querubins seduzidos, e uma fábrica de produzir Titãs, gigantes poderosos resultantes dessa miscigenação abominável.
Como percebem, precisei reagir. Tive que me arrepender da criação. Resolvi dar um basta nessa esbórnia e acabar com todo ser vivente. E quando eu resolvo, está resolvido, todos sabem!
Entretanto, por via das dúvidas, que também pode ser entendido como por minha infinita misericórdia, etc. e tal, resolvi salvar um exemplar de cada ser da minha criação. Usei novamente da minha prerrogativa de preferência e salvei um casal de cada ser vivente, menos dos peixes que nunca correram perigo com minha alternativa de extinção.
Agora percebo que minha decisão de usar o dilúvio não foi equânime. Exatamente por esse minúsculo esquecimento. Deixei de considerar que os peixes e muitos mamíferos marinhos não correram qualquer perigo. Acabei sendo injusto na minha infinita justiça.
Da próxima vez usarei um asteroide colossal que acabe com todo ser vivente e mandarei meus escolhidos fugirem numa nave espacial.
Exatamente como fiz no planeta Strubílio-37, sudoeste da galáxia Andrômeda. Está resolvido. Palavra de Deus!
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